quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

Quatro Bocas Inquietas



                Meu fogão tem quatro bocas. Quatro malditas bocas que não param de tagarelar por um instante. Conversam sobre o tempo, sobre o jornal, sobre a violência que mais uma vez assola a cidade. Conversam até mesmo de política. Quatro bocas que não se calam.
                Digo “meu fogão”, porque hoje sou seu dono, mas nem sempre foi assim. O tal fogão pertencia a minha falecida avó, provavelmente é daí que vem tamanha falação. Eu pensei que ficaria aliviado quando ela morreu, pensei que ficaria em silêncio. Mas foi só a velha desfalecer que as quatro bocas, antes caladas, começaram a falar.
                “Ei, Você não vai ao trabalho?”
                “Idiota, você ta atrasado!”
                “Você devia ter um emprego melhor!”
                “Devia arrumar uma namorada!”
                “Devia parar de fumar maconha!”
                “Devia ser alguém na vida!”
                “Você devia sair!”
                “Devia tomar um pouco de sol!”
                “Devia se alimentar”
                “Devia parar com os remédios!”
                “Antidepressivos!”
...

                Meu fogão tinha quatro bocas que em nenhum momento se calavam. E digo que tinha, pois hoje não tem mais.
     Meu fogão hoje é tralha jogada no quintal.
     Quatro bocas não me irritam mais.
     Quatro bocas não se falam mais.
     Quatro bocas não amolam mais.
     Quatro bocas me deixaram, enfim, em paz.
                Calaram-se
                Calei-me


BUDDA

terça-feira, 15 de janeiro de 2013

Horizonte em Chamas (O Gigante pt. 3)

Parte 1
Parte 2



                Diferentemente daquele outro dia, onde a chuva trazia a tona toda a angústia e solidão, agora fazia sol, e o mesmo, assim como a chuva, era uma representação dos sentimentos que transbordavam dos olhos daqueles dois jovens. Um sentimento quente e aconchegante.
                Sentavam-se sobre uma pedra negra, coberta pela copa de uma enorme árvore que, infelizmente, não dava frutos. A jovem garota que gostava de sentir os sentimentos da terra, ouvir suas palavras, e o comprido jovem de pernas metálicas. Ambos contemplavam o horizonte em chamas. Contemplaram o céu laranja de sol poente que, assim como eles, não era eterno, mas, voltaria a aparecer no dia seguinte. Trocavam umas palavras vez ou outra. Sentiam a paz de estar com alguém igualmente diferente de todo o resto. Dois pontos singulares e, aparentemente, irrelevantes.
                A cabeça do sol ficava, a cada minuto, menor. Enquanto isso, os dois se lembravam de tudo que passaram até ali. Lembraram dos risos, das pessoas chamando-os de diferentes. Lembraram de como isso os incomodava. Lembraram de dias cinzas e sem cor, dias que pintavam uma tela de seus puros sentimentos. Sentimentos amargos, sem vida, neutros. Lembraram da chuva, da solidão. Lembraram da Angústia de gritar ao léu, no seco do ar, sabendo que ninguém ouviria, sabendo que ninguém viria perguntar o motivo da dor. E toda aquela dor, todos aqueles dias, foram pintados de cinza, pois era assim que eles se sentiam. Cinzas.
                Por fim, lembraram-se do dia em que se encontraram e, por uma obra do acaso, perceberam-se semelhantes na dor. Semelhantes na cor. Então dois jovens cinza conheceram uma nova cor. Pacífica e quente. Uma cor que só existia quando aquelas duas manchas cinza se uniam. Não estavam mais sós.
                Então, no horizonte, a luz sumiu. O escuro de uma noite negra e pesada invadiu o local. Mas era quente. Dois corpos se abraçaram no escuro, lembrando-se agora da cor.  
                Um dia aquelas duas manchas cinza se dissiparam e, pelo resto de toda a eternidade, nunca mais se viu outras manchas como aquelas. Mas outras manchas surgiram, manchas diferentes. Sua essência era a diferença. Ser diferentes os fazia originais. E todas essas manchas estão destinadas, querendo ou não, a encontrarem manchas semelhantes que se igualam na diferença.


Matheus Menegucci

quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

Dos Lábios Azuis





                À medida que adentrava a floresta densa e úmida, na esperança de achar uma saída ou um pouco de luz, sem nem ao menos saber como cheguei ali, a tal floresta ficava mais negra e assustadora. É confuso dizer que tipo de animal fazia aqueles barulhos. Ruídos agudos e ameaçadores vindos de um lado, enquanto do outro, uma gama de sons graves e medonhos, trêmulos e baixinhos, como quem está assustado, à procura de sua mãe. Foi em meio a tal escuro, que fez minha mente pensar em milhões de possibilidades, milhões de imagens que nem sequer existiam, que pude ver a primeira luz. Uma trilha guiada por um ponto fluorescente ao longe. Engasgado com meu próprio pavor, segui-a.
                Aquela luzinha azul fluorescente foi a única luminosidade que vi por um bom tempo, uma luz fraca quase sumindo no escuro eterno e negro. A luz se apagou. E não só o escuro dominou o lugar, como também o frio. Encolhi-me ali no chão, sentindo uma overdose de sentimentos e melancolias que invadiram todos os meus sentidos naquele momento. E todos esses sentimentos se resumiam ao neutro.
                Meus olhos nada enxergavam.
                Meus ouvidos nada escutavam.
                Minha língua só sentia o amargo da própria boca.
                As narinas não sentiam nada.
                A pele só se sentia gelada.
                Foi quando, em fração de segundo, todo o nada que me dominava se preencheu. Meus olhos se encheram de luz quando vi toda a floresta iluminada de neon. Árvores com folhas coloridas e troncos que escorriam seiva fluorescente. Meus ouvidos foram invadidos pelo coral em ópera dos pássaros neon multicolores, trajados, estranhamente, de ternos azuis e gravatas pretas. Minha boca agora se sentia alegre e doce. O cheiro de vida era tão impactante quanto o calor que agora me tocava de leve. Parecia o efeito de alguma droga alucinógena, uma espécie de viajem psicodélica e multicolor.
                Ainda assim, com toda luz e as sensações boas e orgásticas que eu sentia, senti medo. Muito medo. Talvez mais do que antes. Aquilo tudo era desconhecido para mim, um universo novo e fantástico, onde a realidade não parecia bem vinda. Senti-me tão só em meio a tanta vida. Tanta cor.
                Girei. Girei em busca de algo, um caminho, alguém. E achei, em uma de minhas viradas frenéticas, alguém que logo me roubou o olhar. Encostada ao pé de uma enorme árvore, uma garota. Pele branca, cabelo claro. Olhos castanhos e lábios azuis. Parecia ter uns 13 ou 14 anos. Seus lábios azuis fluorescente pareciam ter brilho próprio, não parecia batom, pareciam naturais.
                Ela me fitava fixamente, fato que só fez aumentar meu medo e angústia. Dei um passo para trás e então fiquei parado, imobilizado, por algum motivo. Queria sair correndo, aprofundar-me ainda mais na mata escura que estava antes. Queria sair daquele mundo neon. Não consegui.
                Fiquei ali, paralisado por um tempo, enquanto ela, parada em seu canto também, ficava olhando para mim. Parecia me estudar, querer entender algo que era estranho para ela. Enquanto isso os pássaros, enfiados em seus terninhos engomados, cantavam alguma canção com notas altas, realmente muito altas, daquelas que quebrariam copos. Os olhos da menina passavam por todo meu corpo nu no mesmo ritmo da canção. “Quanto tempo fiquei ali?”
                Já me sentia confortável após tanto tempo parado. Foi estranho quando, sem motivo ou explicação, as luzes coloridas e fluorescentes começaram a se escurecer. Tudo começou a se afogar no escuro. As árvores, os pássaros, a menina, eu.
                E então voltamos à mesma cena.
                Meus olhos nada enxergando.
                Meus ouvidos nada escutando.
                Minha língua só sentindo o amargo da própria boca.
                As narinas não sentindo nada.
                A pele se sentindo gelada.


BUDDA