domingo, 28 de junho de 2015

Ebulição/Condensação



Quando abri a janela, a luz quente me cegou. Era uma manhã fria, sim, então não pude deixar de me encolher um pouco. O que me faz pensar que o calor que senti não era físico, ou que talvez, para mim, o frio de verdade era o escuro que existia naquele quarto antes de eu abrir a janela. Pois, mesmo me abraçando com meus próprios braços, senti calor.
Fiquei ali parado, de braços cruzados e olhos fechados, enquanto a brisa gelada me aquecia mais que minhas cobertas jamais aqueceriam. Eu sorri. Como se, por aquela janela, tudo que me afligia e me fazia sentir mais responsável do que eu nunca poderia ser, tudo que fazia eu me curvar e andar fintando as rachaduras do chão, como se tudo que me envolvia de peso transbordasse e se esvaísse. Como liquido se transformando em vapor. Como vapor sumindo no ar.
Quando abri os olhos, vi o céu nublado e um distante horizonte se fundindo a ele. Inspirei ar gelado como os sonhos que um dia também transbordaram daquela janela, me senti disposto. Foi como se, por breves segundos, eu realmente acreditasse que podia mudar. Que podia deixar no passado as coisas que passaram. Acreditei que podia tentar coisas novas. Que podia ser alguém melhor para mim. Como se o universo tivesse me dado aquele dia como uma chance de recomeçar sem cometer os mesmos erros. Como se eu fosse jovem de novo.
Mas, se o passado é o que está atrás, ele está mais próximo do que podemos imaginar. Espreitando. Esperando que você se vire por uma fração de segundo para te abocanhar com toda a vergonha de sua vida. E foi exatamente o que aconteceu quando, com toda a disposição que ainda me invadia, decidi me virar parar começar um novo dia.
A vida não é tão quente do lado de dentro da janela, muito menos tão inspiradora. E a luz que entra não é o suficiente para aquecer todo o escuro que existe em cada canto desse quarto. E cada espelho só realça mais cada sombra perdida no meu rosto. Todos os lençóis são frios. E atualmente todos tem o mesmo cheiro. Cada grão de poeira é uma lembrança que guardei sobre esses móveis. E em cada porta retrato há um momento que, agora, só existe ali.
Pensando bem, melhor me deitar de novo. 


Matheus Menegucci

terça-feira, 14 de abril de 2015

Papel Fino, de Rasgo Fácil

Natalya Lobanova

Os personagens desta história são linhas rabiscadas em papel fino, de rasgo fácil. Linhas pouco detalhadas que, em diferentes quadros, tomam diferentes formas. Reflexo da falta de memória. Da falta de importância dada a cada história que me foi contada ou vivenciada. Representação clara da pessoa rasa que me tornei. A pessoa rasa que amei e odiei e que, por fim, quis que não existisse mais. A pessoa rasa da qual tentei me livrar, me lavar. Não posso me livrar de mim.
Em certo ponto parei para observar meus traços, perguntando a mim mesmo qual deles era eu. Busquei nos mais grotescos e tortos – nada –, depois nos mais belos e simétricos – nada. Eu não existia ali. A grande e potente borracha que minha mente trazia em mãos tratou de apagar os traços que fiz de mim pouco depois de eu tê-los criado. Quando os busquei, não me admirei ao ver que papel em branco rasgado fora o máximo que pôde, de mim, ser encontrado. Nenhum traço a mais fiz de mim mesmo. Nenhum traço a mais pois... eu já não era feito de traços. Eu era feito de mancha, de rasgos. A única imagem que me sobrara de meu ser era um borrão no mesmo papel fino, de rasgo fácil.
E eu vaguei entre as cenas, onde os rostos de meus amigos nunca eram os mesmos. Vaguei calado, deixando que um outro eu tomasse o controle do corpo e da voz. Esse outro eu sorria, brincava e talvez traçasse em meu papel fino mais do que eu mesmo traçava. Ele se desenhou e logo já não precisava de mim. Ele era corpo, eu era mente. Ele era a paisagem, eu o solo. E em tão pouco tempo ele convenceu a todos aqueles outros traços de que era, de fato, eu.
Ele consertou os rostos mal desenhados, de modo que, em todas as cenas, o personagem parecesse o mesmo. Criou um cenário, roteiro e direção para sua história. Ele nos guiou por seu monólogo, de modo a dar algum sentido a toda a bagunça que eu havia inicialmente criado.
Ele era um gênio. Eu, seu escravo.
Ele era inteiro. Eu, inteiro rasgado.
Ele era tinta. Eu, papel borrado.
Ele era corpo. Eu, já nem isso.
Ele era mente. Eu, desperdício.
Ele era eu. E eu...
Eu já nem era.


Matheus Menegucci