segunda-feira, 22 de outubro de 2012

As Rugas de Olga

Obra "Retrato de mulher velha" de Leandro Bassano.


        Olga preferiu se afogar nas próprias rugas do rosto. Não queria conversar com ninguém, nem olhar nos olhos de quem quer que fosse. Qualquer movimento fora do "comum" a irritava, as crianças brincando lá fora, os cachorros latindo a meio quarteirão de distancia. Olga, pobre Olga, velha e chata. Queria um tempo para si.
        Tinha uns quase oitenta anos, mas, enquanto se afogava no próprio rosto, se viu como uma criança, a garotinha inocente que foi um dia. Mergulhando em seu mar de lembranças, fazia de tudo para desviar das memórias de seu casamento, de suas "amigas", de suas tias e primas que tanto odiava. Não sobraram muitas lembranças após tanto desviar. Mas ali estava a unica que lhe importava, entre uma lembrança do pai e uma da mãe, estava a memória que ela procurava... A memória de si. A menina Olga.
        Por que procurou tanto por essa lembrança?
        Por que seria aquela a unica que lhe importava?
        Precisava lembrar-se de si mesma. Acreditava que há muito tempo havia se perdido, perdido sua essência. E agora que estava ali, de frente para a porta que a levaria de volta a seu verdadeiro eu, teve medo de entrar. Medo de que o arrependimento pudesse a sufocar, medo de perceber que não era nada além da casca do que um dia foi. Tinha medo de ver quem era.
        Olga não entrou, ficou refletindo por um tempo diante da porta de sua lembrança. Finalmente chegou a conclusão de que não valia a pena. Virou-se e foi embora. Deixou seu desejo para trás, descobriu que era o que era, e que não valia a pena ser o que foi, pois o passado se foi.
         Ela emergiu em seu rosto... E voltou a ser Olga.

Matheus Menegucci

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Batom Vermelho


Diga que não a ama
Diga que não a quer em sua cama...
Eu sei, você não consegue.

Diga que não a deseja
Que não pensa nela onde quer que esteja...
Eu sei, ela te persegue.

Todos os magnatas,
Todas as almas ingratas,
Todo esse alvoroço
Por um beijo no pescoço.
Todos os charutos,
Todos os insultos,
Todos falsos agrados
Por alguns míseros trocados.

Diga que não pensa nela
Diga que não quer mais velas...
Eu sei, é o que você mais quer.

Chame-a de objeto
Diga que não a quer sob seu teto...
Eu sei, ela é melhor que sua mulher.

Batom vermelho
Poses e cabelos
Belas peças de roupa
Mesmo que sejam poucas.
Homens de terno preto
Babando de desejo,
Querendo sentir o mel
Na boca dela está o céu.

Ela não te ama, e nunca vai te beijar
Você pensa que a usa, mas ela não se cansa de te usar.
Então abra sua carteira, pague pelo serviço,
Pague pelo "amor", pague por seu novo vício.
Ela é seu novo vício...
Ela é seu novo vício...
Ela é seu novo vício...
Um amor fictício...


Matheus Menegucci



sábado, 6 de outubro de 2012

Refração (Diário Andrógino "2")


        "Já disse que suas curvas me dão água na boca?"
        Eu estava nua e tímida, usando só a calcinha, sentia frio. Tremia a cada vez que ele apertava o pequeno botão e um flash saia da grande câmera. Estava de pé e meio encolhida no meio do estúdio fotográfico inteiro branco. Ele me elogiava, mandava eu perder a timidez.
        "Seja selvagem, querida, mostre seu outro lado!"
        Não queria mostrar meu outro lado...
        "Mostre o animal dentro de você!"
        Ele insistia tanto? Eu não queria.
        Por que tem tanta vergonha de mim? Querendo ou não, ainda sou você. Mesmo que tenha tirado do seu corpo o que um dia fui eu, tirou o que representava sua masculinidade, você "me" tirou do seu corpo, exteriormente, nunca pôde me tirar de sua mente. Eu nasci junto de ti. E não importa quantas modificações faça. sempre serei uma parte tua. Quanto mais feminina você se torna, mais a fúria de mim se apossa. Quanto mais mulher você é, mais real me torno.
        Então mostre seu outro lado... Eu!
        Não quero te mostrar!
        Mas precisa. Isso te alimenta.
        Me alimenta.
        Nos alimenta.
        É quente.
        Já não sei diferenciar qual de nós sou eu. Quem está do lado de fora agora?
        Nós dois...
        Somos um, como sempre fomos!
        Você gosta? Sim... Eu gosto... Te excita?
        "Queridinha, o que você pensa que está fazendo?"
        Flashes, flashes, flashes e Gritos!
        Nós somos um só! Isso nos dá prazer... Nos faz gemer!
        "Querida..."
        Sangue...
        E agora?
        Ele está morto...
        O que sou EU? 

Matheus Menegucci


quinta-feira, 4 de outubro de 2012

Reflexo (Diário Andrógino "1")


        Toque.
        Toque.
        Sinta na ponta dos dedos o vidro frio e liso do espelho. Na tentativa de alcançar o reflexo perfeito e narcisista de si, perceba que ele é impenetrável.
        Impenetrável...
        Não inquebrável...
        Então o quebre e corte suas mãos andróginas com os cacos de vidro que refletem sua beleza perfeita e seus traços transexuais quase que não notáveis. "Se não te conhecesse, pequeno monstro, diria que é uma mulher de verdade."
        "Pequeno monstro da vovó!"
        "E essas mãozinhas pequenas? E essa cara de menina?"
        Vire homem! Não sou um homem, sou uma mulher! Você não nasceu assim. Ou será que sim? Será que Deus cometeu um erro quando colocou aquelas bolas no meio de suas pernas? De qualquer modo, você as jogou no lixo.
       Afinal, quem é Deus?
        Por que estou falando comigo mesmo?
        Quem de nós dois sou eu?
        Quem somos de verdade?
        Nós somos de verdade?
        Existe nós? Ou sou só eu dando vida a parte de mim que matei?
        Quem sou EU?


Matheus Menegucci

Obra "De frente pro espelho" de Laura Santiago