quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

Cinzeiro


Ela surgiu vagarosamente do fundo das águas calmas da larga piscina. Quase não abriu a boca para tomar folego após um longo tempo debaixo d'água. Os pulmões se encheram de ar enquanto a visão se preenchia com a imagem de um homem à beira da piscina, fitando-a com olhos de partida. Ela apoiou ás mãos na beira, aos pés do rapaz, olhou para cima tentando decifrar o que seu rosto dizia, mas o sol só lhe permitia ver sua silhueta.
Ergueu uma das mãos, para proteger os olhos da luz do sol que, mesmo brilhante, não fazia do dia menos cinza. Ainda sem poder ver muito bem o rapaz, percebeu o cigarro entre seus dedos. Cigarro que ele levou a boca e tragou suave e sem pressa. Após alguns segundos fitando um ao outro, o rapaz botou-se sobre um dos joelhos e apoiou um dos braços no outro que ficara levantado. Agora ela podia ver perfeitamente seu rosto. Olhos castanhos, nada muito surreal ou fora do comum. Barba por fazer. Cabelo castanho escuro e desgrenhado, que mal se movia com o vento, mesmo que liso. Trajava roupas sociais, calça e terno marrons. Uma gravata vinho. Tudo muito pouco chamativo e discreto.
Entreolharam-se por um instante e na boca dela brotou um sorriso breve e tímido, que logo se dispersou ao lembrar o motivo de ele estar ali.
– Não tem que ser assim? – ela disse, com o rosto para baixo, mas ainda olhando para ele, como se quisesse esconder a expressão ou as rugas que se formavam no queixo quando segurava para não chorar. – Você sabe que não.
– Se não tivesse que ser assim, não seria.
Ela tomou de sua mão o cigarro, já consumido pela metade. Tragou forte e fundo. Fechou os olhos por um instante e os reabriu ao soltar a fumaça. Devolveu-o ao rapaz. Com os rostos ainda mais próximos e com o homem quase caindo sobre ela na piscina, equilibrando-se, esperavam que algo acontecesse ou que algum deles dissesse algo. Quem falou foram os olhos dela, tristes e brilhantes, dizendo: “É sua decisão. Boa sorte.”
Ela deu impulso para trás e mergulhou mais uma vez. Com os olhos perdidos nas ondas da piscina, o rapaz esperou um instante antes de se por outra vez de pé. Olhou ao redor, o cigarro na boca sem fumar. A mulher surgiu novamente na superfície, agora do outro lado da piscina. Olharam-se descrentes, neutros e sem dizer nada com o olhar. Ele levou a mão à boca enquanto tragava pela última vez o cigarro. Jogou o resto ainda aceso para trás e, olhando para a mulher encostada do outro lado da piscina, soltou uma rajada de fumaça cinza no ar. Sentiu os dedos ficarem fracos, e logo as pernas, os braços, o pescoço. O branco dos olhos começou a escurecer suave e devagar. Então a pele do canto do rosto também começou a ficar cinzenta. Ergueu uma das mãos e olhou para ela. Os dedos finos e pretos pareciam se desfazer no ar. O vento assoprou suavemente mais forte e levou gradativamente todos os seus dedos. Sentiu que o rosto e todo o corpo, inclusive seu terno barato, também se desfaziam em cinzas no ar. Abaixou o que restou da mão e fitou a jovem por uma última vez. Com a voz fraca e rouca, disse antes de se dissipar por completo em uma grande nuvem negra de cinzas:
– Bom dia, amor.


Matheus Menegucci

quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

Catarse



– Você ainda me ama?
Ecoou a voz feminina junto de um olhar preto e branco, sem dizer muito. As pálpebras se fecharam e abriram rapidamente, dando um pouco mais de brilho aos olhos verdes, grandes e distantes. As curtas mexas de cabelo escuro recaídas na face eram levemente assopradas pelo vento. O rosto parecia inerte, a boca se movia suave, fazendo parecer que o som não saia dali. Um suspiro, um sussurro.
– Ainda me ama?
Um silêncio assustador e frio como resposta, enquanto ele olhava para o chão, segurando o rosto com a palma das mãos. O vento cantava alto, assoprando ferozmente as folhas das grandes árvores daquela praça deserta.
A cabeça parecia pesada, como se o rosto fosse se desprender e cair no chão a qualquer momento. O que o perturbava tanto na pergunta que ela fez? Ele sabia a resposta, tinha tanta certeza daquilo como nunca teve de qualquer outra coisa em sua vida. Mas preferiu ficar em silêncio, sentindo a ausência que aquele ato lhe traria. Preferiu ficar quieto, sentindo tudo o que a resposta que guardava consigo já lhe fizera sentir e querer chorar, partir.
– Você não me ama? – A voz dela parecia vazia e perdida.
Ele virou o rosto para ela, olhou-a nos lábios, pois não queria se perder nos olhos. Expirou forte, como se jogasse fora todo um momento de reflexão. Ainda assim não disse nada, só contemplou. Diferente dela, tinhas os olhos vívidos e atentos, como se houvessem trocado de papel por um único dia. Ele sentia que já não podia a prender, segurá-la consigo. Nunca tentara de fato, e agora era tarde. Percebeu que o sofrer é o fim de qualquer caminho que se tome. Aproximou-se e beijou-a suavemente, sem pressa, sem medo. E quando afastaram seus rostos, os olhos dela não pareciam tão distantes mais.
– Ainda me ama?
Ele sentiu todo o seu redor se transformar em cinzas flutuantes, viu tudo ficar branco até que sobrou só ele e ela. Sabia que era o certo a se fazer. E ao pé do ouvido dela, com peso no peito e uma lágrima brotando escondida no canto do olho, ele mentiu como nunca antes mentira:
– Eu nunca te amei.


Matheus Menegucci