quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

Cinzeiro


Ela surgiu vagarosamente do fundo das águas calmas da larga piscina. Quase não abriu a boca para tomar folego após um longo tempo debaixo d'água. Os pulmões se encheram de ar enquanto a visão se preenchia com a imagem de um homem à beira da piscina, fitando-a com olhos de partida. Ela apoiou ás mãos na beira, aos pés do rapaz, olhou para cima tentando decifrar o que seu rosto dizia, mas o sol só lhe permitia ver sua silhueta.
Ergueu uma das mãos, para proteger os olhos da luz do sol que, mesmo brilhante, não fazia do dia menos cinza. Ainda sem poder ver muito bem o rapaz, percebeu o cigarro entre seus dedos. Cigarro que ele levou a boca e tragou suave e sem pressa. Após alguns segundos fitando um ao outro, o rapaz botou-se sobre um dos joelhos e apoiou um dos braços no outro que ficara levantado. Agora ela podia ver perfeitamente seu rosto. Olhos castanhos, nada muito surreal ou fora do comum. Barba por fazer. Cabelo castanho escuro e desgrenhado, que mal se movia com o vento, mesmo que liso. Trajava roupas sociais, calça e terno marrons. Uma gravata vinho. Tudo muito pouco chamativo e discreto.
Entreolharam-se por um instante e na boca dela brotou um sorriso breve e tímido, que logo se dispersou ao lembrar o motivo de ele estar ali.
– Não tem que ser assim? – ela disse, com o rosto para baixo, mas ainda olhando para ele, como se quisesse esconder a expressão ou as rugas que se formavam no queixo quando segurava para não chorar. – Você sabe que não.
– Se não tivesse que ser assim, não seria.
Ela tomou de sua mão o cigarro, já consumido pela metade. Tragou forte e fundo. Fechou os olhos por um instante e os reabriu ao soltar a fumaça. Devolveu-o ao rapaz. Com os rostos ainda mais próximos e com o homem quase caindo sobre ela na piscina, equilibrando-se, esperavam que algo acontecesse ou que algum deles dissesse algo. Quem falou foram os olhos dela, tristes e brilhantes, dizendo: “É sua decisão. Boa sorte.”
Ela deu impulso para trás e mergulhou mais uma vez. Com os olhos perdidos nas ondas da piscina, o rapaz esperou um instante antes de se por outra vez de pé. Olhou ao redor, o cigarro na boca sem fumar. A mulher surgiu novamente na superfície, agora do outro lado da piscina. Olharam-se descrentes, neutros e sem dizer nada com o olhar. Ele levou a mão à boca enquanto tragava pela última vez o cigarro. Jogou o resto ainda aceso para trás e, olhando para a mulher encostada do outro lado da piscina, soltou uma rajada de fumaça cinza no ar. Sentiu os dedos ficarem fracos, e logo as pernas, os braços, o pescoço. O branco dos olhos começou a escurecer suave e devagar. Então a pele do canto do rosto também começou a ficar cinzenta. Ergueu uma das mãos e olhou para ela. Os dedos finos e pretos pareciam se desfazer no ar. O vento assoprou suavemente mais forte e levou gradativamente todos os seus dedos. Sentiu que o rosto e todo o corpo, inclusive seu terno barato, também se desfaziam em cinzas no ar. Abaixou o que restou da mão e fitou a jovem por uma última vez. Com a voz fraca e rouca, disse antes de se dissipar por completo em uma grande nuvem negra de cinzas:
– Bom dia, amor.


Matheus Menegucci

quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

Catarse



– Você ainda me ama?
Ecoou a voz feminina junto de um olhar preto e branco, sem dizer muito. As pálpebras se fecharam e abriram rapidamente, dando um pouco mais de brilho aos olhos verdes, grandes e distantes. As curtas mexas de cabelo escuro recaídas na face eram levemente assopradas pelo vento. O rosto parecia inerte, a boca se movia suave, fazendo parecer que o som não saia dali. Um suspiro, um sussurro.
– Ainda me ama?
Um silêncio assustador e frio como resposta, enquanto ele olhava para o chão, segurando o rosto com a palma das mãos. O vento cantava alto, assoprando ferozmente as folhas das grandes árvores daquela praça deserta.
A cabeça parecia pesada, como se o rosto fosse se desprender e cair no chão a qualquer momento. O que o perturbava tanto na pergunta que ela fez? Ele sabia a resposta, tinha tanta certeza daquilo como nunca teve de qualquer outra coisa em sua vida. Mas preferiu ficar em silêncio, sentindo a ausência que aquele ato lhe traria. Preferiu ficar quieto, sentindo tudo o que a resposta que guardava consigo já lhe fizera sentir e querer chorar, partir.
– Você não me ama? – A voz dela parecia vazia e perdida.
Ele virou o rosto para ela, olhou-a nos lábios, pois não queria se perder nos olhos. Expirou forte, como se jogasse fora todo um momento de reflexão. Ainda assim não disse nada, só contemplou. Diferente dela, tinhas os olhos vívidos e atentos, como se houvessem trocado de papel por um único dia. Ele sentia que já não podia a prender, segurá-la consigo. Nunca tentara de fato, e agora era tarde. Percebeu que o sofrer é o fim de qualquer caminho que se tome. Aproximou-se e beijou-a suavemente, sem pressa, sem medo. E quando afastaram seus rostos, os olhos dela não pareciam tão distantes mais.
– Ainda me ama?
Ele sentiu todo o seu redor se transformar em cinzas flutuantes, viu tudo ficar branco até que sobrou só ele e ela. Sabia que era o certo a se fazer. E ao pé do ouvido dela, com peso no peito e uma lágrima brotando escondida no canto do olho, ele mentiu como nunca antes mentira:
– Eu nunca te amei.


Matheus Menegucci

sábado, 30 de novembro de 2013

Ao Longe, Só

Foto por Marina Menegucci


De joelhos, ergueu os olhos e viu o sol laranja sobre sua cabeça, pintando todo o céu ao redor de si. Fechou-os, quase cega pela forte luz do sol, assim que algo lhe tocou a face direita do rosto. Levou a mão e sentiu algo se desfazendo entre seus dedos. Era preto e frágil, cinzas do que quer que fosse. Olhou para cima e viu muitas delas caindo leve e devagar; em circulo. Sentiu como se estivesse no olho de um furacão de cinzas calmas.
Olhou ao redor. O asfalto deserto, coberto por destroços do que um dia foram carros. O céu limpo, com nuvens perdidas e sem rumo. Não havia vivalma por ali. Ela apertou as pálpebras enquanto uma mecha do cabelo ruivo caia sobre os olhos, tentando acreditar que aquilo era só um sonho, e que a qualquer momento alguém a acordaria em sua boa e velha cama.
Nada. Levantou-se, os ombros finos já cobertos de cinzas. Ainda de olhos fechados, respirou fundo antes de os abrir e ver o horizonte negro. O que sobre ela era apenas um redemoinho de cinzas, ao longe, no horizonte, se mostrava como uma tempestade de escuridão... Partindo.
O primeiro passo foi lento, mas os seguintes foram ganhando cada vez mais velocidade. Ela queria entender sabe lá o que. Correu atrás da tempestade no horizonte, com determinação, mas não a alcançou, sabia que não alcançaria, correu só pra saber que pelo menos havia tentado. Desistindo, jogou-se de joelhos no chão.
Era tudo muito confuso, muito sem razão de ser. Ela abaixou novamente a cabeça e viu-se então na mesma posição de quando recobrara a consciência. É errado dizer que ela queria uma resposta, pois não sabia nem o que perguntar para o nada em volta de si. Não sabia onde estava, nem o que fazer. Não fazia a mínima ideia de qual era o caminho de casa. Então decidiu partir, cambaleando, na direção em que viera, oposta à nuvem que partia ao longe. Mas, olhando para o chão, não viu outra enorme tempestade negra surgindo no céu já não tão azul à sua frente. Foi.


Matheus Menegucci

terça-feira, 19 de novembro de 2013

Bioluminescente



Por muito tempo estive lá no fundo, no escuro. Ouvindo só as batidas do coração e o movimento suave da água calma. Se olhasse para cima, poderia ver uma fresta de luz cortando o oceano sobre mim, mas a mesma nunca chegou a me tocar. O ecoar do que quer que fosse ali embaixo me assustava. Podia ouvir, mesmo que muito pouco, o barulho do mundo lá fora; Talvez fossem só minhas lembranças ressoando em minha mente. Não era frio, mas não me aquecia. Era neutro e normal. Sempre.
Se eu já havia pensado em sair de lá? É claro que já. Tentei me mover, nadar pra superfície. E nadei... Nadei e nadei. E quando já não me aguentava mais, percebi não ter saído do lugar. Percebi que aquele mar era mais imenso que meu desejo de sair dali. Percebi que não bastava tentar. Faltava algo. Algo maior que o próprio oceano negro ao meu redor.
Já havia me conformado com a condição de estar ali. Parei de mover as pernas e os braços pra boiar. Deixei o corpo descer eternamente. E não me pergunte como eu fazia pra respirar, pois, durante todo o tempo que estive lá, nunca pensei nisso. De fato, eu não respirava, e foi quando lembrei de respirar que descobri como sair dali.
Fiquei tanto tempo sem o ar, que pensei já não precisar dele. Mas de súbito, num momento calmo e quieto, meus pulmões suplicaram ar, fizeram toda a mansidão do mar se dissipar em uma tempestade dentro de mim. Eu me contorci, o corpo doía sem ar. Tive a sensação de fraquejar, como se meu corpo quisesse dormir. Um estranho ruído constante e sem forma invadiu minha cabeça junto dos meus soluços subaquaticos. Creio que o que me pareceram horas de angústia foram apenas alguns poucos segundos, até que eu desmaiei de olhos abertos, sem forças, afundei ainda mais.
Ainda podia ver, mesmo que minha visão escurecesse pouco a pouco, aquela fresta de luz que, em poucos segundos, sumiu na escuridão. Meus olhos fecharam-se por completo, eu sabia, não havia como voltar.

Mas, no último fio quase morto de esperança, uma luz vermelha atravessou a escuridão do oceano, abrindo-me os olhos. Era eu, brilhando de alguma forma, como um peixe bioluminescente. Senti-me forte e vivo. Senti-me, pela primeira vez, acreditando em mim. Em uma só impulso para cima eu cruzei o oceano, iluminando-o de vermelho. Atravessei a parte negra, a parte azul escura e a parte azul mais clara. Vi a superfície. Vi o céu escuro da noite, ainda debaixo d'água. E então o ar invadiu meus pulmões e eu parei de brilhar. Respirei por bons segundos, acostumando-me novamente com o ar. E então, com um suspiro de cansaço, contemplei a imensidão do céu sobre o mar infinito sob mim. 


Matheus Menegucci

 

segunda-feira, 1 de julho de 2013

Do Pó ao Póstumo (O Homem Errado #3)



Sniff...
A última fileira de pó entrou narina abaixo, e naquele momento ele quis estar em casa. Não na casa onde morava, aquele apartamento caindo aos pedaços que pagava há cerca de seis meses; ele queria estar em casa; a casa onde nasceu, cresceu... A casa da qual um dia se esqueceu. Mas acabara de se lembrar. E por um descuido, foi longe demais. Deixou-se levar muito fácil. Não tomou cuidado com a mente, então chegou ao fundo... O fundo da memória.
Era como um quarto escuro; sem paredes, janelas ou chão. Ainda assim, sentia que estava sobre algo quente e úmido; algo que lhe fazia lembrar sua mãe. “Como era mesmo o nome dela?”, “Como se isso importasse!”. Ele estava encolhido. Sentia-se fraco e prepotente; assim como se sentira durante toda sua vida, mas nunca demonstrou para ninguém além de si mesmo. Talvez por nunca ter tido ninguém. Por nunca ter sido alguém.
Mas mesmo não tendo sido alguém, o rapaz foi longe. Notas de cem não eram novidade para os seus bolsos. Assim como a cocaína não era estranha ao nariz. Mas dessa vez ele extrapolou, entrou na área escura da mente. O lado que não pode ser visto com os olhos, mas com o tato.
Então tocou a superfície na qual se encontrava. Sentiu amor, sentiu-se seguro e quente. Sentiu como se fosse um menino; Sem medo de aprender, de errar. Sentiu-se inocente e, por um segundo, quis manter-se assim. Quis ter podido seguir o caminho certo. Mas ele não podia mais. Ele errou. Seria sempre um homem errado.
—Cadê você, seu merda!
A voz forte e agressiva seguiu o barulho da porta sendo arrombada com o corpo pesado. Ele acordou de seu delírio, ainda assim sem lucidez; enxergava tudo aos borrões e não fazia questão de se mover. Continuou debruçado sobre o pó branco na mesa da sala.
—Então você acha bonito não pagar pela droga dos outros, é? —Ecoou a voz.
—Eu não sei quem é você... —Disse, sem se mexer sobre a mesa, com a voz mole.
—O que? Não sabe quem eu sou? Olha pra mim, filha da puta!
—Você é minha mãe? Se não for, pode ir embora... Eu quero minha mãe.
—Sua mãe? Eu vou te mostrar o caminho para encontrar sua mãe.
—Minha mãe morreu.
—Ótimo!
Não houve muito além disso. Só o erguer da arma que já estava empunhada, o puxar do gatilho e o “Poow!”. Nada além.
Só o sangue errado.
Do homem errado.
Na mesa errada.
No esconderijo errado.
Sobre o pó errado.
O caminho errado.

E é tão estranho falar de si mesmo na terceira pessoa...


BUDDA

quarta-feira, 5 de junho de 2013

Filho do Ponteiro (O Homem Errado #2)



- Ei, você tem horas?
Disse alguma voz fraca, que mais se parecia um sopro perdido no ar, procurando algo ou alguém; qualquer coisa. Na verdade aquela voz tinha um dono e uma direção, mas os devaneios nos quais eu mergulhava não me permitiram identificá-los de primeira. Quem estava perdido ali era eu; sem dono ou direção, sem passado.
- Amigo – insistiu a voz -, você tem horas ou não?
Acordei de mim. Percebi estar na boca de uma viela, como se estivesse saindo dela. O movimento da cidade à noite ardia à minha frente, mas, atrás de mim, só havia o escuro frio de uma viela quieta. E era de lá que ele me chamava.
Levantei o braço, sem ao menos olhar para a cara do homem que me perguntava as horas, olhei o relógio largo no pulso e disse:
- Sinto muito, deve estar parado.
- Hum! Parado... Mas mesmo assim, de acordo com ele, que horas são?
- Bom, - disse, não entendendo a razão da pergunta – aqui são 14:56.
Ele não me agradeceu, simplesmente balançou a cabeça e voltou para o fundo da viela, onde provavelmente morava; era um indigente sujo e velho, com cabelos grisalhos compridos e barba falhada; deitou-se ao lado de duas latas de lixo.
Virei-me de volta para a rua movimentada um pouco a minha frente. Os carros e as pessoas pareciam andar rápido demais. Ainda assim, sempre que alguém passava muito perto ou olhava para mim, eu sentia o mundo ficar devagar, como em câmera lenta. Creio que não estava sujo, mas me sentia assim. Usava um terno cinza e carregava uma maleta marrom na mão esquerda. Não sei o porquê, mas em nenhum momento me perguntei o que estava fazendo ali, como chegara ali, nem de onde havia vindo.
Ele estava atrás de mim de novo.
- Você tem um cigarro.
- Não, eu não...
- Não foi uma pergunta. Você tem um cigarro.
- Han? Eu não tenho um cigarro.
- Olhe entre seus dedos, você tem um cigarro!
Por que eu tinha um cigarro? Nunca fumei. O mais impressionante é que ele estava aceso e, ao que parece, já havia sido fumado pela metade. Uma fina fumaça emanava dele, até tocar meu nariz. Incrível! Eu sempre achei o cheiro da fumaça do cigarro insuportável, mas agora me parecia um tanto quanto agradável; Acalmava os nervos.
- Tudo bem, eu tenho um cigarro. Mas e daí? Você quer?
- Seria uma grande gentileza! - Disse, com um sorriso torto na boca - Eu adoro fumar a tarde.
- Mas não estamos mais a tarde.
- Bom, seu relógio me disse que estava de tarde. Então que assim seja.
- Tudo bem, fique com você. - Lhe entreguei o cigarro e, antes que fosse embora outra vez, eu disse – Espera! Toma, fique com o relógio também.
Já ia tirando o grande relógio que me pesava o braço, quando ele interrompeu.
- Não, não... Esse relógio é seu. Ele te diz algo. Você só precisa escutar.
- Escutar o relógio?
- Sim, meu amigo! Acredite, faz mais sentido do que você imagina.
- Tudo bem então...
Outra vez, o mendigo foi para sua “cama” no escuro daquela viela.
Outra vez, fiquei sozinho ali.
Olhei pro relógio de novo: 14:56. Estava parado. Talvez tenha acabado a pilha ou simplesmente parado de funcionar. Mas o mais intrigante é que, mesmo estando parado, quando ergui o pulso ao ouvido para “ouvir o relógio”, pude escutar:
             TIC TAC, TIC TAC, TIC TAC...


BUDDA

domingo, 12 de maio de 2013

O Prólogo (O Homem Errado)





            - Onde é que eu to?
            Meus passos apressados ecoam em ruas desertas. “Onde eles estão? Todo mundo! Para onde foi todo mundo?”. De fato, o que todos disseram durante todos os dias da minha vida estava certo: há algo de errado comigo. “Como cheguei aqui? Por que cheguei aqui? Por que aqui?” É o ecoar de tudo o que há em minha cabeça neste exato momento. “Sou eu? Quem sou eu?”
            Os postes brancos e brilhantes iluminam a noite fria e quieta na qual eu vago. Eles são minha única companhia, uma vez que a lua também me deixou. O terno amarrotado de tanto andar e correr por essas ruas, em busca de qualquer coisa, qualquer sinal. Em busca de respostas, ou melhor, em busca das perguntas que nunca fiz no caminho até aqui. A gravata frouxa, rosto suado. Sinto meu cabelo, antes penteado para trás, cair sobre meu rosto. “Por que minhas mãos estão presas?”, acabo de notar a fita cinza amarrada em meus pulsos, prendendo um ao outro; São resistentes, difíceis de tirar, mas nem me preocupo com isso, tenho pensamentos demais para decifrar.
            Eu poderia gritar, e grito.
 Nada além do ecoar da minha própria voz entre os prédios. “Onde estão os carros? Onde está minha maldita cidade?”. Não há nada além de mim. Nada além do homem errado.

- Onde é que eu to?
Grito mais uma vez, sem esperança de resposta. Por que ainda estou correndo sem direção? Uma vez que sei que não encontrarei nada. Cansado, jogo-me na beira da estrada. Olho para o céu. Não há estrelas. Fico calado, ouvindo minha respiração. Ouvindo os próprios pulmões ofegantes ecoando nos prédios da metrópole. “Quem sou eu? Quem sou eu?”. Não que eu não saiba quem sou eu. Só queria saber se de fato sou eu. Se este era meu destino. Se o caminho que tomei era o meu. Talvez eu tenha errado, pegado o caminho de outro. Talvez eu esteja no lugar de outro.
Talvez eu tenha nascido no lugar de outro.
Na casa de outro.
Com a família de outro.
Talvez eu tenha tomado as decisões de outro.
O sucesso de outro.
Talvez eu seja outro, diferente do que era para ser.
Talvez haja outro em meu lugar.
“O que diabos aconteceu?”

Mas, pensando bem, tomar o caminho de outro não me fez tão mal. Mesmo que tenha feito de mim a “ovelha negra” da família, levou-me à um bom futuro. Eu tive sucessos e realizações. Fiquei rico. Mais que rico. Eu me tornei uma espécie de Rei. 
Talvez um Deus.
Fico imaginando o que teria acontecido se eu tivesse nascido na casa certa. Sem as desgraças que tive. Sem o “visitante”. É provável que tudo tenha acontecido ao contrário. Eu teria nascido em uma família rica, seria um homem de sucesso até certa idade, e depois, fracassaria. Eu seria um ninguém. Não teria dinheiro, mulheres ou fama. Talvez eu estivesse lecionando português em uma escola onde nem os outros professores me respeitariam. Seria motivo de piada para os alunos. Assim como foi minha vida antes de eu me tornar o que sou.
Mas talvez eu tenha nascido no lugar certo. Com os descendentes certos. Com o signo certo, não que isso importe. E talvez tenha dito as palavras erradas para a pessoa errada que me deu conselhos errados. Que me tornou a pessoa errada. O sucesso tem cheiro de puta cara, daquelas que você se apaixona se não souber que é puta. E eu não sabia. O maldito visitante não disse. Ele deixou eu me apaixonar. Convenceu-me a tomar a estrada errada, na direção errada, com as intenções e idéias erradas. Ele fez eu me apaixonar pela puta errada, na esquina errada, com a camisinha errada.
Mas de que vale tudo isso? Por que digo tudo isso? Uma vez que meu fim é bem semelhante aquele começo. Eu, sozinho.
Talvez eu tenha o sangue errado.
Os genes errados.
Os talentos errados.

Talvez eu seja o homem errado.
Com o destino errado.
No terno errado.
Na rua errada.

Talvez eu esteja errado, mas é mais provável que eu só esteja no plano errado. 
E acho que não dá pra reajustar.



Matheus Menegucci - Budda

terça-feira, 16 de abril de 2013

O Último Varal do Céu Azul




                O vento assopra quieto ao sul, fazendo flutuar os panos. No fundo do quintal, um varal repleto de roupas e tecidos brancos, seriam imaculados se o tempo não os houvesse transformado em branco amarelado, encardido. E o tempo também se fez presente no rosto da mãe que, cansada, equilibra o peso do corpo sobre os pés, balançando levemente com o assoprar do vento, assim como o vestido floral que usa. Ela olha aqueles panos brancos sendo empurrados levemente pra frente e, no mesmo instante, voltando.
                O céu como um lençol de intenso azul, incapaz de proteger do calor do sol, 40 graus ardendo nas costas. E ali, sentados à sombra do morro no asfalto deserto, três meninos brincam com seus carrinhos velhos de plástico. Sem camisa, magros, com as costelas desenhadas na pele parda. Não há nuvens naquele céu.
                As crianças não se importam de ficar no meio da rua - rua aquela que fora movimentada um dia -, pois olham de um lado para o outro, e sabem que nada virá; Nenhum carro, nenhum passante, nenhuma ideia ou pensamento sequer. Ao contrário deles, a mãe se importa em lavar direito as roupas, cada vez melhor, mesmo sabendo que, inevitavelmente, água não limpa o que o tempo encardiu.

Matheus Menegucci

terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

Querida Clara,



Nota encontrada junto do corpo de um dos operários vitima do incidente na mina 07-182:


Querida Clara,
                Esses últimos dias têm sido conturbados. É provável que esta carta nunca chegue ao seu conhecimento, mas, caso você a receba, quero que saiba que não há com o que se preocupar, uma vez que, querendo ou não, já não há muito o que fazer para ajudar. Na verdade, creio já não haver nada.
                Lembra daquela tarde fria de outono quando te levei ao parque? Quanto tempo faz? Uns sete anos? Bom, isso não importa. O que importa é que, neste exato momento em que escrevo, sinto-me da mesma maneira que nos sentimos aquele dia. Há um pouco de água fria e corrente passando pelos meus pés, exatamente como naquele dia; há também um silêncio que nunca muda, como o do parque àquela época do ano; e por fim, há uma foto sua deitada ao lado do meu corpo. Talvez tenha sido esse o motivo pelo qual decidi escrever para ti. Talvez por eu já não me lembrar de mais ninguém.
                Não sei o que te aconteceu depois daquele dia, nunca mais te vi, nunca mais conversamos. Talvez tenha se casado, tido filhos que não se parecem nenhum pouco com você. Talvez tenha ficado louca assim como eu, afinal, era esse nosso plano. Mas talvez tenha seguido outros caminhos. Talvez tenha largado a faculdade, começado a se drogar. Talvez tenha simplesmente arranjado um emprego comum na loja de sua tia. “Qual era mesmo o nome dela?” Você sempre a mencionava e eu sempre me esquecia.
                Pois é! As coisas mudam muito rápido. Quando comecei a escrever, disse que me sentia como naquele dia no parque. Mas não mais. Agora sinto muito frio. Tanto frio que faz meus lábios tremerem. Sinto como se o sangue em minhas veias tivesse se tornado gelo, sinto-o correr devagar. Sinto cada batida do peito perdendo o ritmo. Não posso mexer as pernas, pois estão presas por uma enorme rocha. Onde eu estava com a cabeça quando vim para cá buscar respostas sobre eu mesmo? É o fim!
                Se um dia chegar a ler esta carta, quero que saiba que cada uma das batidas fora do tempo que meu coração deu nesses meus últimos suspiros foi para ti. Sinto-o como se estivesse mastigando o sangue e tossindo. Quero que saiba que nunca esqueci nosso único dia juntos. E foi nesse dia que pensei antes de desfalecer sobre estas rochas geladas e escuras.

                                Com Carinho,

                                               Jonas 



Matheus Menegucci

sábado, 2 de fevereiro de 2013

Octopus





                Meu quarto é tão escuro. E ainda assim me causa dor na vista, cansaço. Vejo os quatro cantos e paredes imersos nessa escuridão, mas eu, sentado em uma cadeira no centro, estou iluminado. O único ponto de luz em meio a tanto escuro sou eu. Não que eu brilhe, ou algo do tipo. “Talvez isso seja um sonho!” A luz está apagada, mas o centro do quarto está iluminado. Iluminado com alguma forma de luz sobrenatural que não provém de lugar nenhum. “Estranho!”
                E o que faço aqui? Sentado nesta cadeira olhando para frente sem ver nada. Nem minhas memórias posso ver, só o escuro. Onde está a porta? E as janelas? Por que digo que aqui é meu quarto? Uma vez que não vejo nada além de um simples pedaço do chão que, por sua vez, nem se parece com o do meu quarto.
                Pisco tão devagar quanto meu estado sonolento permite. Sinto descer uma gota fria de suor da minha testa. Algum som misterioso parece estar vindo detrás de mim. Parece som de água, som do fundo do mar. Som de vida. Mas não é bom. Soa-me um tanto quanto predatório.
                No mesmo ritmo calmo e sonolento, algo estranho acontece. Vejo duas coisas estranhas saindo do escuro atrás de mim. São pontiagudas, molhadas e grossas. Sem falar das ventosas que abrem e fecham. São enormes. Dois tentáculos negros, inicialmente, que logo se revelam quatro. Um deles me toca o ombro, é frio e mole, mas, parece ser bastante forte. Logo vejo uma multidão de oito tentáculos, ou devia dizer braços, tocando em mim, massageando-me. Fazendo um, aparentemente, dócil carinho. Talvez me estudando. Tocando meu corpo.
                Mesmo que frios, ele aquecem minha solidão, sinto-me como se fosse um deles. Mas não, eu sou a presa. E sei disso porque os tentáculos que antes me acariciavam, agora estão enrolados em mim, firmemente, não me deixam mover. E quebrando todo o ritmo da cena, eles me puxam veloz e ferozmente para o escuro. Só posso ver o ponto iluminado diminuir enquanto sumo na escuridão de tentáculos negros.
                Sufocado.
                Devorado.


BUDDA

quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

Quatro Bocas Inquietas



                Meu fogão tem quatro bocas. Quatro malditas bocas que não param de tagarelar por um instante. Conversam sobre o tempo, sobre o jornal, sobre a violência que mais uma vez assola a cidade. Conversam até mesmo de política. Quatro bocas que não se calam.
                Digo “meu fogão”, porque hoje sou seu dono, mas nem sempre foi assim. O tal fogão pertencia a minha falecida avó, provavelmente é daí que vem tamanha falação. Eu pensei que ficaria aliviado quando ela morreu, pensei que ficaria em silêncio. Mas foi só a velha desfalecer que as quatro bocas, antes caladas, começaram a falar.
                “Ei, Você não vai ao trabalho?”
                “Idiota, você ta atrasado!”
                “Você devia ter um emprego melhor!”
                “Devia arrumar uma namorada!”
                “Devia parar de fumar maconha!”
                “Devia ser alguém na vida!”
                “Você devia sair!”
                “Devia tomar um pouco de sol!”
                “Devia se alimentar”
                “Devia parar com os remédios!”
                “Antidepressivos!”
...

                Meu fogão tinha quatro bocas que em nenhum momento se calavam. E digo que tinha, pois hoje não tem mais.
     Meu fogão hoje é tralha jogada no quintal.
     Quatro bocas não me irritam mais.
     Quatro bocas não se falam mais.
     Quatro bocas não amolam mais.
     Quatro bocas me deixaram, enfim, em paz.
                Calaram-se
                Calei-me


BUDDA