quinta-feira, 28 de agosto de 2014

Inicialização


Escuro. Quieto. Não por muito tempo.
De uma maneira inexplicável, a luz se faz, branca profunda, dando origem a visão, que aos poucos identifica formas estranhas, ofuscadas. Alguns segundos tornam nítidos os móveis de madeira, os quadros e porta-retratos que se inundam o quarto de faces alegres, humanas. A cama arrumada, vazia. Os olhos secos piscam. Confusos. E agora brilhantes.
No começo tudo é muito devagar, ele não sabe como agir. Sente os braços, as pernas. Sente que existe e que está ali. A ponta dos dedos roça o tecido áspero e trançado do braço da poltrona onde ele se senta, de frente para a cama de casal, em um quarto desconhecido e branco. As fotos, cheias de rostos diferentes, de diferentes pessoas, de diferentes idades. Com diferentes... sorrisos. Todos sorriem, sem exceção.
Ele agora está de pé, recurvado sobre um dos porta-retratos sobre a estante. Analisando. Seu rosto reflete no vidro que protege a fotografia de um garoto, e só então ele se vê. Leva mão às faces para sentir suas feições, semelhantes às que vê nas fotos. A mão agora toca a foto, e o polegar escorrega sobre o rosto de alguém. Alguém sem nome. Alguém que se parece com ele, que talvez devesse ser igual a ele. Mas ele sente e sabe, de alguma forma, que embora se pareça com as pessoas das fotografias, não é uma delas. Ele é... outra coisa.
Circuitos percorrem o interior de seu corpo, junto a estruturas metálicas e material sintético que simulam alguns tecidos humanos. Ele é uma cópia. Mecanizada e programada. Programada para acordar e perceber o mundo ao seu redor. Filtrar informações, sensações. Programado para sentir.
As coisas já não estão tão devagar, e as informações surgem como água em uma cachoeira de pensamentos. Os olhos se movem de um lado ao outro involuntariamente, analisando tudo o que podem e alcançam. Números surgem em algum lugar de sua mente. Cálculos. Nomes e lembranças das quais não se lembra e nunca viveu. Coisas que não fazem sentido algum, mas com começo, meio e fim. Ele cai de joelhos, sentindo que vai explodir, mas não explode. E, num curto instante, tudo está quieto e calmo de novo. Mas, agora lúcido do mundo, ele sabe o que é e o que acontece ao seu redor.
Novamente de pé, ele respira fundo, mesmo que não precise de ar, e se direciona a porta do seu quarto de lembranças programadas. Gira a maçaneta e, ainda um pouco confuso, sai.

Longos corredores e o ecoar dos próprios passos deslocados o guiavam sem direção, buscando qualquer coisa no caminho. Uma porta metálica se abriu e logo ele se viu novamente no escuro, em total silêncio. Pôde ouvir pela primeira vez batimentos consecutivos, no mesmo ritmo, sempre. Soube, era seu coração. Sintético. Perfeito. Vivo.
- Bem-vindo, senhor.
Uma voz calma anunciou, vindo de lugar nenhum, no momento em que as luzes se acenderam gradativamente. Após um repentino susto, o menino se viu sobre um domo, uma enorme cúpula metálica que se estendia por toda a sala.
- Gostaria de olhar o céu, senhor? - A voz computadorizada indagou.
O garoto só assentiu com a cabeça e, em um ou dois segundos, a estrutura metálica sobre si se abriu, mostrando o céu pintado de estrelas que lhe encheram a vista. Suas pernas fraquejaram por um instante, fazendo ele se sentir pequeno e só. Frio.
A nave era imensa, e ele imaginou que poderia haver mais alguém por ali, em algum lugar. E, após algum tempo de contemplação, decidiu sair para procurar por alguém que fizesse com que ele não se sentisse assim tão só. Mas, ao sair em busca do que quer que fosse, não notou a tela de um computador piscando ao fundo:
População humana a bordo: 0
População androide a bordo: 1


Matheus M. Paiva