sábado, 15 de setembro de 2012

Viela dos cacos de vidro



        Uma viela escura, úmida e quieta. carros barulhentos passam correndo sob a passarela onde três pessoas, desconhecidos, caminham lentamente."Corre vagabundo!" alguém grita com uma sinfonia de sirenes ao fundo. De um lado da estrada a moto destruída, do outro, o corpo sendo coberto por um plastico preto. Trânsito, poluição sonora, madrugada. O vidro se quebrando quebra o silêncio da viela, e então, passos apressados.
         Em algum lugar da cidade um grupo de amigos se diverte atirando coquetéis molotovs no asfalto deserto. Os olhos azuis de uma jovem encantada com o fogo. Os olhos de um garoto assustado, covarde. O olhar libertador do garoto que teve a ideia, um poeta, um gênio, um psicopata. E os outros olhos se divertindo com as chamas. Um casal briga no corredor do apartamento. A senhorinha de idade reclama. Um bebê chora. Um corpo fraco cai sobre os cacos de vidro da viela, respiração ofegante.
         Alguém dispara um tiro, mas o som da civilização se sobressai. Ninguém escuta. Uma festa. Fogos de artifício. Roupas brancas. Não é ano novo. Uma garrafa de vodka iluminada pela luz verde. Uma ponta de baseado sai voando após queimar o dedo de alguém. E a fumaça, em todos os lugares, em todos os pulmões, Fumaça. Fumaça de cigarro, de carro, de bomba, de tiro, de fogo, de festa, de maconha. Fumaça de uma cidade sem alma. Um grande homem se ergue sobre o pobre coitado na viela, aponta um .38, fala alguma coisa entre os dentes, cospe o charuto, faz um drama, vira e vai embora. O outro fica ali chorando, lamentado não ter sido morto essa noite. E eu, termino como comecei, no escuro de uma viela escura, úmida e quieta, observando e imaginado a cidade. Respiro e volto a pensar.



Budda

terça-feira, 11 de setembro de 2012

O Gigante (Pt.1)


        Cambaleando de um lado para o outro, daquele jeito que já era próprio dele. O cabelo curto e negro escapava por debaixo do chapeuzinho preto no topo de sua cabeça. Rosto pálido. Terno preto.
        Algumas das pessoas que o viam na rua -E quando digo "algumas" quero dizer "A maioria delas"- Riam do seu jeito diferente de ser. Alguns disfarçavam um pouco, enquanto outros riam descaradamente. O problema é que suas novas pernas eram ligeiramente maiores que as antigas, talvez um pouco desproporcionais ao seu corpo. Também havia o fato de que ele ainda não tinha se acostumado com aquelas coisas metálicas. Mal conseguia se equilibrar. 
        Pobre jovem, todos riam dele, de suas pernas grandes e metálicas, do seu jeito de andar, falar e ficar de pé. Todos riam do garoto que que dava passos grandes demais.

Continua...

Matheus Menegucci

sexta-feira, 7 de setembro de 2012

O Pé Esquerdo



        Do portão, ela observava a casinha cinza. Cercada por uma cerca branca. A pintura descascada. As flores secas no jardim. Uma única janela aberta, a mais alta, que ficava no segundo andar. Era uma casa, digamos assim, estreita. Era alta e fina. O telhado formava um grande triangulo sobre a janela que estava aberta. A casa era cinza. O dia era cinza. A grama ainda era verde. Mas o verde não era “o verde”.
        Com as mãos magras, ela empurrou o pequeno portão, que rangeu feito um choro rouco. O primeiro passo foi lento, o segundo também, andava de forma meio desengonçada, mas sem deixar de ser elegante, trajava vestido preto e um véu marrom sobre a cabeça. Ela era enorme. O pé esquerdo tocou o primeiro de três degraus da entrada da casa. Logo tocou o segundo. E para que pudesse pisar com o pé esquerdo no tapete de entrada da casa, pulou o terceiro degrau. Estava ali, com a cara na porta, ergueu lentamente a mão pálida até a campainha, não tocou, preferiu bater na porta... “TOC TOC TOC...” Não houve resposta. Que para ela soava com “Entre”. Girou a maçaneta e entrou. A sala estava perfeitamente arrumada, uma organização de se admirar. Procurou com os olhos, sem sair do lugar, pelo primeiro piso, não havia ninguém. O que não era de se admirar, ela já sabia que Estella estava em seu quarto, no andar superior, o quarto com a janela aberta. Os passos na escada foram lentos, suaves e barulhentos. Deslizou a mão suave e elegantemente pelo corrimão de madeira. Um belo sorriso apareceu em seus lábios quando olhou para o chão e percebeu que seu pé esquerdo tocara no segundo piso antes do direito. Caminhou em direção ao quarto, mas em seu caminho havia um espelho, como já era de se esperar dela, parou para ajeitar o cabelo e alguns detalhes da roupa. A porta do quarto de Estella estava entreaberta, uma luz suave e agradável vinha de lá. A luz do dia. Empurrou a porta. Uma poltrona virada para a janela, a cabeça grisalha de Estella sobressaía. O pé esquerdo invadiu o quarto. O direito entrou e parou ao lado. Estella estendeu a mão para bater o ultimo cigarro no cinzeiro. Tossiu. A grande mulher se aproximou ainda mais lentamente e pousou a mão esquerda sobre o ombro direito de Estella.
        Ficaram ali por um tempo, as duas olhando a rua vazia, as flores secas, as rachaduras do chão lá fora. Depois de algumas horas, quando o céu já estava laranja, eles se olharam. Estella se levantou. De braços dados, desceram as escadas. Saíram de casa com o pé esquerdo. Caminharam pelo asfalto deserto até sumirem no horizonte. Mesmo com a guerra ardendo, a morte não teve a mínima pressa em levar uma velha amiga. Como sempre, fez seu trabalho calmamente. Como sempre, fria e carinhosa.

Budda

domingo, 2 de setembro de 2012

O Leito



        Só sei que naquela manhã, ainda cedinho, alguém disse que ele havia morrido. Fazia um bom tempo que estava moribundo, lutando o máximo contra a morte, silenciosamente. As vezes saia na rua, corcunda , sempre se segurando em alguém, sempre devagar. Era estranho vê-lo andando, de alguma forma minha mente já havia se acostumado a vê-lo sempre sentado em sua poltrona na varanda de sua casa. De alguma forma, eu não conseguia aceitar que um velhinho tão esguio e aparentemente fraco seria tão forte a ponto de ficar tanto tempo vivo.
        Não sei ao certo o que ele teve, talvez tenha sido uma doença. Talvez só velhice. Não faço a minima ideia de que idade ele tinha. Era baixinho, cabelos ralos e brancos, muito brancos, pele enrugada. Sua voz ainda ecoa em minha cabeça, mesmo que sem dizer uma palavra sequer. Lembro perfeitamente de quando ficávamos no banco ao lado de sua casa - naquela época em que ele e meu avô ainda eram amigos, não sei o que aconteceu para deixarem de ser - Ficávamos falando sobre tudo, sobre as coisas da vida dele na maior parte, até porque eu era só um garotinho, ainda não tinha vivido nada. Falávamos sobre musica, as vezes. Da minha casa, eu podia ouvi-lo arranhando, muito mal arranhado, alguma coisa no violino. Ficava horas tentando fazer alguma coisa decente em meio a notas desafinadas e fora do tempo. Mas eu gostava de ouvir, de algum modo a musica sempre me trouxe paz, mesmo que estivesse levando paz a outro. E então, naquela bela manhã de sol, "Ele morreu."
        Fico tentando imaginar, entre cenas e mais cenas, como teria sido a morte dele. Talvez ele tenha morrido ao dormir. Talvez tenha tossido até a garganta doer. Talvez tenha só fechado os olhos por um minuto e... Mas a minha versão preferida é a de que ele, deitado em sua cama ou sentado em sua poltrona, coberto por um cobertor, sentiu que era a hora, estava cansado de resistir, não disse nada, só relaxou o corpo, fechou lentamente as pálpebras e ficou pensando - se é que ainda tinha condições de pensar -, esperando a morte vir, respirando lenta e dificilmente, aceitando o toque frio, porem aconchegante da morte. Não se despediu, só reviveu todas suas lembranças, inclusive os momentos em que ficamos conversando no banco amarelo, e então já não estava presente, partiu, quieto, sem magoas.
        Realmente, ele não era uma pessoa próxima de mim, era o tipo de pessoa que esta sempre na casa de sua avó nos dias de festa, mas não uma pessoa que signifique algo. Mas de alguma forma, ele fez parte da minha infância, mesmo que somente com um simbolo, uma imagem. Vez vilão, vez mocinho. E da mesma forma, achei que ele nunca morreria, talvez por ter sido uma imagem, achei que tal imagem nunca se dissiparia, mas se desfez. Só ficou um sentimento vazio, mas que ao mesmo tempo não consegue ser triste, só vazio, e neutro. É estranho. Estranho aceitar que o violino nunca mais vai desafinar, que a imagem dele ali na poltrona na varanda não mais existirá de forma física, só mental, que essas pequenas coisas quase que insignificantes nunca mais me rodearão. Mas de qualquer forma, depois de tudo isso, depois de todos os pêsames e pesares... "Descanse em PAZ!"

Budda