Escuro. Quieto. Não
por muito tempo.
De uma maneira
inexplicável, a luz se faz, branca profunda, dando origem a visão,
que aos poucos identifica formas estranhas, ofuscadas. Alguns
segundos tornam nítidos os móveis de madeira, os quadros e
porta-retratos que se inundam o quarto de faces alegres, humanas. A
cama arrumada, vazia. Os olhos secos piscam. Confusos. E agora
brilhantes.
No começo tudo é
muito devagar, ele não sabe como agir. Sente os braços, as pernas.
Sente que existe e que está ali. A ponta dos dedos roça o tecido
áspero e trançado do braço da poltrona onde ele se senta, de
frente para a cama de casal, em um quarto desconhecido e branco. As
fotos, cheias de rostos diferentes, de diferentes pessoas, de
diferentes idades. Com diferentes... sorrisos. Todos sorriem, sem
exceção.
Ele agora está de
pé, recurvado sobre um dos porta-retratos sobre a estante.
Analisando. Seu rosto reflete no vidro que protege a fotografia de um
garoto, e só então ele se vê. Leva mão às faces para sentir suas
feições, semelhantes às que vê nas fotos. A mão agora toca a
foto, e o polegar escorrega sobre o rosto de alguém. Alguém sem
nome. Alguém que se parece com ele, que talvez devesse ser igual a
ele. Mas ele sente e sabe, de alguma forma, que embora se pareça com
as pessoas das fotografias, não é uma delas. Ele é... outra coisa.
Circuitos percorrem o
interior de seu corpo, junto a estruturas metálicas e material
sintético que simulam alguns tecidos humanos. Ele é uma cópia.
Mecanizada e programada. Programada para acordar e perceber o mundo
ao seu redor. Filtrar informações, sensações. Programado para
sentir.
As coisas já não
estão tão devagar, e as informações surgem como água em uma
cachoeira de pensamentos. Os olhos se movem de um lado ao outro
involuntariamente, analisando tudo o que podem e alcançam. Números
surgem em algum lugar de sua mente. Cálculos. Nomes e lembranças
das quais não se lembra e nunca viveu. Coisas que não fazem sentido
algum, mas com começo, meio e fim. Ele cai de joelhos, sentindo que
vai explodir, mas não explode. E, num curto instante, tudo está
quieto e calmo de novo. Mas, agora lúcido do mundo, ele sabe o que é
e o que acontece ao seu redor.
Novamente de pé, ele
respira fundo, mesmo que não precise de ar, e se direciona a porta
do seu quarto de lembranças programadas. Gira a maçaneta e, ainda
um pouco confuso, sai.
Longos corredores e o
ecoar dos próprios passos deslocados o guiavam sem direção,
buscando qualquer coisa no caminho. Uma porta metálica se abriu e
logo ele se viu novamente no escuro, em total silêncio. Pôde ouvir
pela primeira vez batimentos consecutivos, no mesmo ritmo, sempre.
Soube, era seu coração. Sintético. Perfeito. Vivo.
- Bem-vindo, senhor.
Uma voz calma
anunciou, vindo de lugar nenhum, no momento em que as luzes se
acenderam gradativamente. Após um repentino susto, o menino se viu
sobre um domo, uma enorme cúpula metálica que se estendia por toda
a sala.
- Gostaria de olhar o
céu, senhor? - A voz computadorizada indagou.
O garoto só assentiu
com a cabeça e, em um ou dois segundos, a estrutura metálica sobre
si se abriu, mostrando o céu pintado de estrelas que lhe encheram a
vista. Suas pernas fraquejaram por um instante, fazendo ele se sentir
pequeno e só. Frio.
A nave era imensa, e
ele imaginou que poderia haver mais alguém por ali, em algum lugar.
E, após algum tempo de contemplação, decidiu sair para procurar
por alguém que fizesse com que ele não se sentisse assim tão só.
Mas, ao sair em busca do que quer que fosse, não notou a tela de um
computador piscando ao fundo:
População humana a bordo: 0
População androide a bordo: 1
Matheus M. Paiva
Matheus M. Paiva
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