segunda-feira, 28 de maio de 2012

UM (Pt. 4) FINAL

Parte 1:http://insetosdecarne.blogspot.com.br/2012/05/um-pt-1.html
Parte 2:http://insetosdecarne.blogspot.com.br/2012/05/um-pt-2.html
Parte 3:http://insetosdecarne.blogspot.com.br/2012/05/um-pt-3.html

UM (Pt. 4) FINAL

        É incrível como de súbito meu mundo ficou silencioso e feliz, nós não falávamos, não tínhamos nomes, e nem nos importávamos com isso, eu podia muito bem ensiná-la a falar, mas percebi que seu silêncio era mais sincero que qualquer palavra que um dia foi dita no velho mundo. Eu aprendi tanto com com ela, finalmente me lembrei de como era ter uma família, aprendi a ler olhares, nosso único meio de comunicação.
         A nossa rotina era simples, acordávamos cedo e logo saíamos para explorar o que um dia foi a cidade, corríamos por prédios e destroços, subíamos nas árvores, ficávamos horas buscando memórias, objetos esquecidos, inventando vidas para seus donos, nunca dissemos uma única palavra um ao outro, mas eu sabia que ela tinha a mesma mania que eu, de dar vida a pessoas que não existem, de imaginar um universo paralelo onde a vida existia e crescia em paz, e de algum modo, o mundo havia se recuperado, agora a vida crescia em paz, a céu era azul, e tudo era verde e dominado pela natureza que cresceu além do comum, as arvores superaram os prédios em questão de poucos anos, ou talvez tenham sido muitos anos, eu já não contava, mas podia perceber claramente que estava envelhecendo, minha pele já estava ficando enrugada, mas nunca me senti tão vivo, e o mesmo acontecia com a garotinha, ela cresceu, mas ainda era uma criança, inocente e condenada a eternizar sua presença em um mundo onde a vida começava a florir novamente, mas já era tarde para a raça humana. Voltávamos para nossa "casa" no por do sol, exaustos, o céu escurecia e finalmente dormíamos, acordávamos sempre no mesmo horário, e refazíamos o ciclo, eu tratava seus ferimentos quando ela se machucava, do mesmo modo como ela tratava os meus, era um modo muito bom de aproveitar o resto da vida antes de cair no esquecimento eterno, antes de virar mais um fóssil que viria a ser estudado por uma especie mais avançada, que diria que nós eramos apenas primatas que não evoluíram o suficiente para sobrevier na terra.
        Eu dormia perfeitamente todas as noites como uma pedra, não e lembro de ter sonhos, só dormia à noite, acordava pela manhã e vivia o resto de minha vida. Uma noite fiquei refletindo sobre o que aconteceria com a garota quando eu morresse, o que ela iria fazer? Seguir só? Como fizera antes de eu chegar,  ela se acostumaria com a solidão novamente? Eu fiquei pensando por tanto tempo que caí no sono, mas na mesma noite acordei suando frio, sem ar, sufocado, pensei que aquilo era um pesadelo, e talvez realmente tenha sido, olhei ao meu redor, ela não estava lá, assim como os móveis que ali estavam, não havia nada lá, só o buraco e eu, me levantei, fui para fora, olhei em volta a cidade iluminada pela lua, saí em busca dela, corri pela cidade, pelos mesmos lugares que costumávamos correr, mas eu estava tão cansado, me sentindo fraco, me sentindo velho, voltei, me deitei no chão frio, uma lagrima escorreu levemente pelo meu rosto, eu dormi. E no dia seguinte acordei, na mesma hora de sempre, estava tudo em seu lugar, os moveis, a arvore, e inclusive a garota, meu sorriso se abriu tão largamente, ela me viu sorrindo e retribuiu com seu sorriso branco, seus dentes eram imaculados, nem parecia viver nas condições que vivia, e lá fomos nós, explorar nossa cidade, o rei e a rainha sorrindo pela cidade verde. Mas a cada dia que passava o verde se empalidecia, parecia que o cinza queria dominar o mundo de novo, e logo, pouco a pouco, a garotinha parou de sorrir, nós paramos de correr, a monotonia seguida do tédio nos dominou, ou me melhor me dominou...
        É engraçado, eu fiquei tanto tempo buscando alguém, e eu encontrei, mas logo perdi, foi triste acordar um dia e perceber que ela não estava lá, como naquele pesadelo, que de fato não era um pesadelo, era a realidade tentando abrir meus olhos, a garota nunca existiu, eu a criei, assim como criei milhares de personagens a partir de lembranças mortas e esquecidas, eu a criei para aquecer minha solidão, para não me sentir tão só em meu leito de morte, mas por que eu a deixei partir da minha mente? Tudo bem, ela nunca existiu, mas foi a única ilusão que me trouxe algo de bom, que fez meu tempo passar, que fez eu me esquecer que o mundo havia acabado, me fez acreditar que a vida estava florindo, a vida nunca floriu novamente, a cidade não foi dominada pelo verde, foi doloroso acordar e ver que o mundo ainda era cinza, que as arvores ainda eram fracas e os frutos não muito saudáveis, após tantos anos vivendo uma ilusão, acordei e vi que não só a especie humana como também a vida em geral havia chegado ao fim, o planeta chegou ao seu limite. A garotinha não estava lá, nós nunca fomos DOIS, sempre houve apenas UM, apenas eu, só, tentando manter minha existência quase imperceptível, tentando não me esquecer de mim mesmo, tentando não cair em meu próprio esquecimento, tentando existir em um mundo onde nada mais existia. Eu me sai muito bem inventando pessoas, inventando historias pessoais e memorias artificiais. E então eu estava só, como eu sempre estive, a flor de fogo já não era tão intensa para mim, a lua não tinha mais brilho em minha vida, e eu continuei seguindo, e seguindo, só, seguindo como um cão, indo para o nada, indo para o horizonte, já não buscava nada, só andava, moribundo, até que me sentei em um poltrona vermelha que eu achei em uma velha casa, e aqui estou, sentando, observando o cinza que sobrou do mundo, que sobrou da vida, esperando o fim, o meu fim, o último homem, o ultimo ser racional da terra, o ultimo a deixar a vida, aquele que foi desde sempre, UM...


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